No corredor escuro passou um jovem cantarolando. Empurrou a porta, saindo para o terraço. Estava só e algo o perturbava. Sentou-se num parapeito e observou a cidade anoitecer.
Pela primeira vez na sua vida não sentia medo, sentia sim uma grande certeza do que queria fazer na vida. Com lágrimas no rosto ergueu-se no parapeito na posição de “Cristo”. Ali permaneceu a rir, a chorar, lembrando-se da solidão do passado.
Na base do mesmo prédio, um homem fazia o seu turno de segurança com um cigarro na boca e uma lanterna na mão. A rua estava escura, apenas os raios saindo da sua lanterna destapavam o breu provocado por um corte geral de energia na cidade. A um ritmo lento fazia a ronda, no único momento da sua vida em que se sentia vivo. Analisava cuidadosamente qualquer sinal de possível perigo, fazia jogos psicológicos em que apareciam gangs armados, prontos a matá-lo por dívidas de jogo, lavagem de dinheiro ou até mesmo tráfico de droga. Naquele dia, no entanto, pensava apenas em entrar e abrigar-se do frio, mentindo a si próprio sobre o medo do escuro. Antes de entrar no prédio olhou para cima e viu alguém em cima do parapeito, de imediato correu para o elevador, mas o elevador estava a funcionar apenas com o gerador de reserva do Hotel, portanto, preferiu subir as escadas. Chegado lá acima o homem arfava como um obeso na maratona. Empurrou a porta decidido, mas sem assustar o jovem que reparou estar no parapeito.
- Jovem! – Disse.
- Sim... Boa noite, como vai? A família vai bem? Que bom, então adeus, boas férias! – Disse o jovem sem se mexer um centímetro que fosse, mas numa voz extasiada.
- Boa noite, o meu nome é Álvaro. E não, a família não vai bem. A família é de um, e estou de serviço neste preciso momento. – Disse Álvaro com enorme tranquilidade.
Apercebendo-se que o jovem não responderia Álvaro tentou aproximar-se dele, lentamente.
- Oiça Álvaro, não dê nem mais um passo. Não comece com discursos da treta, e sobretudo, não pense que eu estou aqui a pensar em atirar-me. – Disse o jovem, agora gritando a plenos pulmões.
- Oh... Nada disso, apenas queria saber o seu nome, não estava a pensar que iria saltar...
- Eu não estou a pensar nisso, eu vou mesmo, já o havia decidido antes de chegar cá acima. O meu nome é Alberto, e estou a ter o melhor dia da minha vida. – Disse o jovem voltando ao tom eufórico, interrompendo Álvaro.
- Mas Alberto, isso não é solução. Eu sei o que é ter a tua idade, estar só, e garanto-te que acabar com tudo não resolve nada. – Disse num tom sensível.
- Eu não procuro solucionar nada, nem ajuda. Estou realmente só, aí concordo contigo. Mas como já te disse o dia de hoje foi o melhor... Não quero estar cá para amanhã, onde vinte desgostos fazem fila para atropelar o meu destino. Não conseguiria aguentar. Prefiro ir hoje que posso sonhar... – Disse Alberto, virando-se pela primeira vez, estando agora frente a frente com Álvaro.
- Talvez não entenda totalmente o teu raciocínio, mas estar só é a minha realidade. Posso dizer-te que procurei ajuda e que a minha vida melhorou consideravelmente.
- Não quero viver consideravelmente, quero libertar o meu ser deste corpo. Que diferença me faz se pago a uma pessoa para me ouvir. Quem me importa abandonou-me sem nunca ter saído do meu lado.
- Mas tens de levar as pessoas a perceber o que se está a passar, nada é tão mau que não mude. Até as pedras mudam na sua teimosia eterna.
- Tens razão, algumas coisas mudam, nunca pensei que este meu último momento fosse partilhado. E, por isso, foste realmente um amigo... – Com lágrimas no rosto, deu um passo atrás e deixou-se cair.
- Não, não o faças... – Disse Álvaro tarde de mais.
Acercando-se do parapeito, com lágrimas no rosto, Álvaro olhou para o corpo estatelado lá em baixo. Subiu para o parapeito e colocou-se na mesma posição de Alberto há alguns minutos. Fechou os olhos e pensou se seria cobardia da sua parte refugiar-se na rotina para sobreviver à solidão, se a solução era mesmo desaparecer. Nunca teve coragem para se matar, embora muitas vezes caísse num estado de profunda depressão. De qualquer forma, este não era o caso. O jovem com quem conversou minutos antes motivou-o. Não a atirar-se, mas a perceber que podia controlar o seu próprio destino. Alberto escolheu morrer, o Álvaro escolheu viver. Não o tipo de vida desprezível que levava antes, não a entregar-se à mercê do acaso, mas a «viver».
Basta de sobreviver! – Pensou. As luzes da cidade acenderam-se de novo fazendo ecoar o bulício da cidade uma vez mais.
«E uma terra sem flor e uma pedra sem nome Saciarão a minha fome.» José Régio in “Poema do silêncio”